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Leslie manteve o manete à frente, e o Martin ganhou suavemente o céu. A cem pés de altitude acima dos desenhos, ela colocou o avião em velocidade de cruzeiro, estabilizando-o.
Embora voássemos com um tempo esplêndido, sobre águas reluzentes, o desespero tomava conta da cabine — o assombro ante o fato de seres humanos inteligentes poderem ser arrastados a uma guerra suicida. Era como se a idéia fosse nova para nós, como se a amarga resignação tivesse sido despedaçada por um exame mais detido da sandice que aquilo representava. Voamos durante muito tempo em silêncio.
— Pye — perguntei por fim —, entre todos os pontos onde poderíamos pousar num desenho que se estende até o infinito, por que escolhemos justamente esses passados? Por que Leslie ao piano e Richard junto de seu caça?
— Não adivinham? — replicou, devolvendo a pergunta para nós.
Refleti sobre os dois episódios. O que tinham em comum?
— Ambos eram jovens e estavam perdidos?
— Perspectivas? — sugeriu Leslie. — Ambos haviam chegado ao momento em que precisavam lembrar do poder das escolhas…
Pye assentiu.
— Exatamente.
— E a finalidade desta viagem é aprendermos perspectiva? — perguntei.
— Não, não havia finalidade alguma — respondeu ela. — Vocês caíram aqui por coincidência.
— Ah, Pye! — exclamei.
— Não acredita em coincidência? Então precisa acreditar que você foi o responsável, que navegou para este lugar com a precisão de um fóton, saindo do centro de seu sol até a ponta de uma agulha.
— Bem, é evidente que eu não estava navegando.. — retruquei.
As palavras ganharam sentido, e me virei para Leslie.
Havia entre nós uma brincadeira particular, a de que Leslie, que no chão não possui nenhum senso de direção, sabe melhor do que eu para onde ir quando estamos no ar.
— A navegadora sou eu — avisou ela, com um sorriso.
— Ela acha que está brincando — disse Pye. — Mas sem ela você não teria conseguido, Richard. Sabe disso?
— Sou eu quem sente fascínio por percepção extra-sensorial, por viagens para fora do corpo e experiências de semimorte — retruquei. — Leio os livros, estudo página por página até altas horas.
Leslie raramente lê os livros, mas lê mentes, vê nosso futuro…
— O que é isso, Richard! Sou uma cética, e sabe disso! Sempre fui cética com relação à vida extraterrena. — Sempre? — perguntou Pye.
— Bem… já aprendi que às vezes ele tem razão — respondeu Leslie. — Ele vem com uma idéia esquisita qualquer, e na semana seguinte ou no ano seguinte a ciência descobre a mesma coisa. Por isso, aprendi a encarar essas idéias dele, por mais loucas que pareçam, com uma certa dose de respeito. E eu gostaria das voltas e reviravoltas estranhas da mente dele, mesmo que a ciência nunca as corroborasse, pois são idéias fascinantes. Mas eu é que sempre fui a prática, a que tem os pés na terra.
— Sempre? — perguntei.
— Ah… Isso não vem ao caso — retrucou, lendo meu pensamento. — Eu era uma garotinha. E não gostava daquele tipo de coisa, tanto que parei.
— Leslie está dizendo que era dotada de uma intuição tão intensa que ficava assustada — comentou Pye. — Por isso, bloqueou seu dom e faz o quanto pode para mantê-lo bloqueado. Os céticos práticos não gostam de se assustar com poderes estranhos.
— Minha querida navegadora — falei. — Não é de espantar!
Não foi você quem quis voltar quando Los Angeles desapareceu, fui eu.
Não sou eu quem é capaz de empurrar o manete de um hidravião que não enxergo, é você!
— Não seja bobo — protestou ela. — Eu jamais estaria pilotando um hidravião, jamais estaria pilotando avião algum se não fosse você! A viagem a Los Angeles foi idéia sua…
Leslie tinha razão. Fora eu quem a seduzira, levando-a a deixar a casa e as flores, com aquele convite de Spring Hill. Mas idéias são como a vida para nós dois — mudança e desenvolvimento, tensão e relaxamento, crise e alegria. Do céu caem perguntas fascinantes, despertando respostas, a nos incitar a decifrar isso, exprimir aquilo, ir ali, fazer isso, ajudar acolá. Nenhum de nós dois é capaz de resistir a idéias.
Imediatamente fiquei a imaginar se poderíamos descobrir respostas, explorar, naquele mundo estranho, outras coisas além de nossas vidas anteriores.
— Pye, de onde vêm as idéias? — perguntei, testando-a.
— Dez graus à esquerda — disse ela, — Como? — espantei-me. — Não, idéias. Elas simplesmente…
aparecem nas horas mais estranhas. Por quê?
— A resposta a qualquer pergunta que possa fazer se encontra no desenho. Faça aquela inclinação de vinte graus para a esquerda, agora, e pouse.
Eu sentia em relação à nossa amiga avançada o mesmo que antes havia sentido em relação aos instrutores de vôo — enquanto estivessem a meu lado no avião, eu não tinha medo de tentar qualquer pirueta que pedissem.
— Certo, querida? — perguntei à minha mulher. — Está pronta para mais?
Leslie concordou, ansiosa por mais aventuras.
— Que idéia maravilhosa essa, explorar idéias!
Virei o hidravião como Pye pedira, conferindo detalhes: rodas levantadas, flaps baixados. Reduzi a velocidade.
— Dois graus à direita, alinhe com aquela faixa amarela brilhante debaixo da água… Diminua a velocidade só um pouquinho — disse nossa guia. — Isso! Desligue o motor. Perfeito!
O lugar onde paramos parecia um serão no inferno. Labaredas crepitavam e rugiam em fornalhas, monstruosos caldeirões, com uma substância derretida, suspensos por pontes rolantes, movimentavam-se sobre uma congestionada planície de aço de dez quilômetros quadrados.
— Meu Deus… — exclamei.
Uma empilhadeira elétrica do tamanho de um carrinho de golfe deteve-se no corredor mais próximo de nós, e dela desceu uma jovem delicada, de macacão e capacete, para nos levar a nosso destino.
Poderia ter-nos cumprimentado, mas qualquer palavra se perderia na balbúrdia de ferro e fogo. Um caldeirão inclinou-se, e centelhas azuis jorraram dos moldes de lingotes atrás dela, transformando-a numa silhueta.
Ela não tinha mais que a altura de meu peito.
— Que lugar, hem? — comentou, a título de apresentação, gritando para se fazer ouvir, ao mesmo tempo em que nos entregava capacetes e óculos escuros. Falava como se tivesse orgulho daquele lugar. — É provável que não precisem disso, mas se a gerência nos descobrir sem eles… — Riu e passou o dedo, maliciosa, pelo pescoço, fazendo um sinal para que a seguíssemos.
— Mas não podemos nos comunicar… — Eu comecei. Ela sacudiu a cabeça.
— Está bem. Podem vir por aqui.
Olhei para Leslie: quem é? Ela entendeu o que eu queria saber, deu de ombros e sacudiu a cabeça negativamente.
— Diga, como é seu nome? — gritei.
A moça parou por um momento, surpresa.
— Vocês me dão tantos nomes, todos tão formais! — Sacudiu os ombros e sorriu. — Chamem-me de Tink. — Conduziu-nos, a passos rápidos, na direção de uma rampa que ficava junto à parede mais próxima do local gigantesco, ao mesmo tempo em que mostrava algumas coisas. — O minério vem por correias transportadoras até os criados, do lado de fora. Depois ele é lavado, enquanto é transportado até o funil principal…
Leslie e eu nos entreolhamos, perplexos. Esperava-se que soubéssemos o que estava acontecendo?
—.. é despejado em um dos cadinhos… há 25 nessa área… e aquecido a 1.650 graus. Aí, uma ponte rolante levanta o cadinho e o traz para cá.
— Do que está falando? — perguntei.
— Se o senhor deixar as perguntas para mais tarde, é provável que eu responda a maioria delas enquanto lhe explico os procedimentos.
— Mas nós não…
A moça apontou para cima.
— Na ponte rolante infunde-se gás xenônio no minério fundido, que a seguir é despejado nessas fôrmas, revestidas com vinte mícrons de condrito pulverizado. — Sorriu e levantou a mão, já prevendo nossa pergunta. — Não, o condrito não é usa do para gerar o cristal, apenas facilita a retirada dos lingotes das fôrmas!
Os lingotes não eram de aço, mas de uma espécie de vidro, que ao resfriarem passavam de alaranjado para transparente.
Várias séries de robôs industriais davam forma a blocos quase invisíveis, transformando-os em tarugos, cubos e losangos, do mesmo modo que os lapidadores cortam diamantes.
— Os blocos são aparados e energizados aqui — explicou Tink, enquanto passávamos. — Cada um é diferente do outro, naturalmente…
Nossa misteriosa guia fez-nos subir por uma rampa em curva, até uma câmara pneumática.
— E aqui fica a área de acabamento — apontou mais orgulhosa do que nunca. — Era isto que estavam esperando para ver!
Portas deslizavam, abrindo-se, ao nos aproximarmos delas, e fechavam-se após a nossa passagem.
Desaparecera o barulho. O andar não podia ser mais silencioso, nem mais ordeiro e limpo. Entre as paredes colossais viam-se, enfileiradas, mesas com tampo de feltro, e sobre cada uma delas repousava um cristal polido. O lugar mais se assemelhava a um silencioso ateliê de arte que a uma oficina numa indústria pesada. As pessoas trabalhavam concentradas e em silêncio, debruçadas sobre as mesas. Seria aquela a sala de acertos finais da montagem de espaçonaves?
Retardamos o passo e nos detivemos junto a uma mesa. Um jovem corpulento, sentado numa cadeira giratória, diante de alguma coisa que se parecia com um torno de revólver, inspecionava um bloco de cristal maior do que eu. Por cima de seu ombro, víamos uma delicada estrutura de luzes coloridas no interior do cristal, minúsculos raios laser embutidos, uma rede caprichosa de brilhantes filamentos. O rapaz premiu botões na máquina, e dentro do vidro ocorreram modificações sutis.
Toquei Leslie, apontei para o bloco de cristal e fiz um sinal, tentando lembrar-me. Onde já teríamos visto aquelas coisas antes?
— Ele está verificando se todas as conexões foram feitas — explicou Tink, num murmúrio quase inaudível. — Basta um filamento solto, e toda a unidade deixa de funcionar.
O homem virou-se ao ouvi-la, e deu conosco a olhá-lo.
— Olá! — saudou-nos, simpático. — Bem-vindos!
— Olá! — respondemos. — Por acaso o conhecemos? Ele sorriu, e gostei imediatamente dele.
— Conhecer, conhecem. Querem saber se se lembram de mim?
Provavelmente, não. Meu nome é Atkin. No passado fui o montador de seu avião, em outra época seu mestre Zen… Ah, creio que não se lembra. — Deu de ombros, em nada aborrecido, todo simpatia.
Procurei palavras para me expressar.
— O que… O que estamos fazendo aqui?
— Vejam. — Apontou para um visor binocular montado perto do cristal.
Leslie abaixou-se.
— Puxa vida! — exclamou.
— O que foi?
— Isso é.. Não é vidro, Richie. São idéias! É como uma teia de aranha, todas estão interligadas!
— Explique melhor.
— Não se trata de palavras — disse ela. — Mas acho que a gente deve exprimir isso em palavras.
— Que palavras você usaria, então, Leslie? Tente me dizer.
— Ah! — fez ela, fascinada. — Veja só aquilo!
— Diga — pedi. — Por favor.
— Muito bem. vou tentar… E sobre como é difícil fazer as escolhas corretas e sobre como e importante nos atermos ao nosso melhor conhecimento… E que nós realmente sabemos o que é o mais certo! — Leslie olhou para Atkin. — Sei que não estou fazendo justiça a essa maravilha. — Voltou a olhar pelo visor. — Por favor, leia esse cristal para nós.
Atkin sorriu mais uma vez.
— Está indo muito bem — elogiou ele, olhando por seu próprio visor. — Eis o que diz: Uma pequenina mudança hoje acarreta-nos um amanhã profundamente diferente. São grandes as recompensas para aqueles que optam pelos caminhos duros e difíceis, mas essas recompensas acham-se ocultas pelos anos. Toda escolha é feita inteiramente às cegas, e o mundo não nos dá garantia alguma. E logo depois disso, está vendo? A única maneira de se evitar todas as escolhas assustadoras consiste em deixar a sociedade e se tornar um ermitão, e também isso é uma escolha assustadora. E essa parte está conectada à seguinte: O bom caráter advém de seguirmos nosso supremo senso de retidão, de confiarmos nos ideais sem sequer estarmos certos de que darão certo. Um dos desafios de nossa aventura na terra consiste em nos elevarmos acima de sistemas mortos…
guerras, religiões, nações, destruições… recusarmos a fazer parte deles, e em vez disso exprimirmos o que temos de melhor dentro de nós.
— Que coisa maravilhosa! — exclamou Leslie, ainda contemplando o cristal. — Ah, Richie, escute isso! Ninguém é capaz de resolver problemas para aqueles cujo problema consiste em não desejarem que os problemas sejam solucionados l Li este trecho direito? — perguntou a Atkin.
— Perfeito!
Leslie voltou ao visor, satisfeita por estar começando a entender.
— Não importa qual seja nossa habilitação ou nosso merecimento, nunca alcançaremos uma vida melhor até conseguirmos imaginá-la para nós próprios e permitir-nos tê-la. Deus sabe que isso é verdade!
“É este o aspecto de uma idéia quando se fecha os olhos!”
Leslie olhou para Atkin com verdadeira admiração. “Está tudo ali, todas as ligações, todas as respostas a todas as perguntas que se podem fazer sobre ela. A gente pode acompanhar as ligações em qualquer direção que desejar. Que coisa linda!
— Obrigado — disse Atkin. Virei-me para nossa guia.
— Tink?
— Sim?
— As idéias vêm de uma fundição? De uma siderúrgica?
— Elas não podem ser feitas de ar, Richard — respondeu, muito séria, de testa franzida. — Não podemos utilizar algodão-doce!
Uma pessoa entrega a vida àquilo em que acredita. As idéias dessa pessoa devem sustentá-la, têm de suportar o peso das perguntas que ela própria faz e ainda o peso de cem, mil ou dez mil críticos, incrédulos e detratores. As idéias dessa pessoa precisam se manter de pé, de suportar a pressão de todas as conseqüências que gerarem.
Sacudi a cabeça, admirado com a vastidão da sala, com as centenas de mesas. É verdade que nossas melhores idéias sempre nos chegam prontas e completas, mas eu não estava preparado para aceitar que elas provinham de uma…
— Se já é ruim fracassarmos quando renunciamos àquilo em que acreditamos — disse Tink —, pior ainda é verificarmos que as idéias que defendíamos estavam erradas. — Tink franziu o cenho para mim, sincera e resoluta. — É claro que as idéias vêm de uma fundição!
E não de uma fundição de aço! O aço vergaria.
— Isso é maravilhoso! — assombrou-se Leslie, absorta de novo no cristal, olhando pelo visor como o comandante de um submarino olharia pelo periscópio. — Escute isso: O comércio é idéia e escolha expressadas. Olhe em torno de você neste momento: tudo que você vê e toca foi, um dia, uma idéia invisível, até alguém resolver dar-lhe existência. Não podemos dar dinheiro a um necessitado ego alternativo em outras crenças de espaço e de tempo, mas podemos dar idéias que ele pode transformar em uma fortuna, se assim desejar.
Meu amor, venha olhar. — Leslie voltou-se para Atkin. — Estou atônita. Tudo aí é tão exato, tão bem articulado!
— Fazemos o que podemos — respondeu ele, modesto.
— E este cristal é um desafio. Trata-se de uma idéia central…
chama-se Escolhas… E se uma idéia central apresenta defeitos é preciso parar tudo em sua vida até que ela seja reparada. Nosso trabalho não consiste em fazer com que vocês parem, mas sim ajudá-los a avançar.
Sua voz desapareceu aos poucos no momento em que ajeitei os olhos ao visor, pois os desenhos no interior do cristal absorveram inteiramente minha atenção.
Eram, ao mesmo tempo, conhecidos e estranhos. Conhecidos porque eu estava certo de já ter visto aquilo antes, já contemplara a mesma cena de olhos fechados atingido por idéias meteóricas. O estranho era que a matriz de raios luminosos e planos iridescentes transformavam-se em pensamentos.
É curioso como lançamos redes sobre idéias, pensei. Em todas as línguas, do árabe ao zulu, da caligrafia à taquigrafia, da matemática à música, da pintura à pedra lavrada; em tudo, da teoria do campo unificado a uma maldição, de um prego a um satélite artificial, tudo que se expressa é uma rede em torno de uma idéia.
Um rutilante brilho âmbar atraiu-me a atenção. Expressei a idéia em voz alta, da melhor maneira que pude.
— Coisas ruins não são o pior que nos pode acontecer. O que de pior nos pode acontecer é o NADA. — Olhei para Atkin.
— Cheguei perto?
— Palavra por palavra — respondeu ele.
No cristal, o âmbar converteu-se em azul anil.
— Uma vida fácil nada nos ensina. No fim, é o aprendizado que importa: o que aprendemos e como nos desenvolvemos.
— Isso mesmo! — concordou Atkin.
Surgiu uma linha verde-esmeralda numa das faces do cristal, atravessando-o de um lado a outro: — Traçamos nossas vidas pelo poder de nossas escolhas. Quando nossas escolhas acabam sendo feitas passivamente, é que nos sentimos mais desamparados.
Quando não fomos nós mesmos que traçamos nossas vidas. Foi isso que você disse à jovem Leslie! Podemos ter desculpas, ou podemos ter saúde, amor, longevidade, compreensão, aventura, riqueza felicidade.
Um terceiro nível conectava os dois planos, parecia reforçar a estrutura.
— Ao começarmos a vida, cada um de nós recebe um bloco de mármore, bem como as ferramentas com que transformá-lo numa escultura. — Paralela cambiante: — Podemos arrastar esse bloco intacto, podemos transformá-lo em fragmentos, podemos dar-lhe uma forma maravilhosa. — Um outro plano paralelo: — De todas as outras vidas restam exemplos para que os vejamos, vidas terminadas e não acabadas, luzes-guias e advertências. — Um outro nível a ligar o último ao primeiro: Ao se aproximar o fim da vida, nosso trabalho no mármore está quase concluído, e com nossos últimos golpes de cinzel podemos polir e dar acabamento ao que começamos anos atrás. Podemos realizar o progresso mais visível no fim, mas para isso precisamos ver além da aparência da idade.
Eu estava absorto como um beija-flor diante de uma rosa.
Geramos nosso próprio meio. Obtemos exatamente aquilo que merecemos.
Como invectivar a vida que nós próprios criamos? Quem terá a culpa, a quem cabe o louvor, senão a nós mesmos? Quem pode mudá-la, a qualquer tempo, senão nós?
Fiquei olhando pelo visor ao acaso, encontrando corolários em todos os novos ângulos.
Qualquer idéia poderosa é de todo fascinante e de todo inútil até resolvermos usá-la.
Claro, pensei. O que há de interessante nas idéias é a utilização que delas se faz. No instante em que nós mesmos as experimentamos, que a atiramos para longe da margem onde eram “e se”, transformando-se em mergulhos ousados em rios espumantes, perigosas ou divertidas.
No momento em que me afastei do visor, o bloco de cristal sobre a mesa converteu-se num objeto muito engenhoso. Percebi seu atrativo potencial, mas perdi o domínio sobre o que ele significava, sobre a emoção e poder à espera de utilização. Se fosse uma idéia na mente, não havia como entendê-la.
— …do mesmo modo como as estrelas, os cometas e os planetas atraem a poeira através da gravidade — explicava Atkin a Leslie, feliz por conversar com alguém que sentia tanto fascínio por seu trabalho —, assim também atuam os centros de pensamento, atraindo idéias de todos os tamanhos e pesos, desde centelhas de intuição até sistemas tão complexos que sua exploração exige toda uma vida. — Atkin voltou-se em minha direção. — Terminou?
Indiquei que sim, e sem ao menos uma palavra de despedida ele premiu uma chave em sua máquina, e o cristal desapareceu. Leu meu pensamento.
— Não desapareceu — comentou. — Está numa dimensão diferente.
— Já que estão aqui — perguntou Tink —, há alguma coisa que vocês gostariam de transmitir a um aspecto diferente de vocês?
Pestanejei.
— O que quer dizer?
— Aprenderam alguma coisa que podem dar a um ego alternativo para ser desenvolvido? Se desejassem modificar uma vida, permitir que alguém recebesse de presente um pensamento de vocês, que pensamento seria esse? Saltou-me à mente um provérbio.
— Não há desastre que não possa tornar-se uma bênção, nem bênção que não possa se transformar em desastre.
Tink olhou de relance para Atkin, sorrindo com orgulho.
— Que pensamento interessante! Deu certo em seu caso?
— Se deu certo? — respondi. — Já o usei até gastar! Não avaliamos o bem e o mal com a mesma rapidez que o fazíamos.
Nossos desastres têm sido, às vezes, as melhores coisas que nos aconteceram. E muita coisa que jurávamos ser bênçãos têm sido os mais terríveis desastres.
— O que faz alguma coisa ser boa ou ruim? — indagou Atkin, casualmente.
— O que é bom nos torna felizes a longo prazo, o ruim nos leva à infelicidade.
— O que chama de longo prazo?
— Anos. A vida inteira.
Atkin assentiu, e nada mais disse.
— De onde vêm as suas idéias? — perguntou Tink. A indagação foi acompanhada de um sorriso, mas por trás dele percebi que a pergunta era da máxima importância para ela.
— Promete não rir?
— A menos que seja engraçado.
— Da fada do sono — falei. — As idéias nos ocorrem quando estamos pregados no sono, ou no momento em que despertamos e não conseguimos ainda escrever.
— Então há uma fada do chuveiro — disse Leslie —, e também a fada da caminhada, a fada da natação e a fada do jardim. As melhores idéias surgem nos momentos mais improváveis, quando estamos molhados dos pés à cabeça, enterrados até os joelhos na lama ou quando não dispomos de um bloco de anotações… Sempre que nos for mais difícil registrá-las. Mas como são da maior importância para nós, damos um jeito de reter muitas delas. Se algum dia encontrarmos a fada das idéias, aquela gracinha, vamos matá-la de abraços, de tanto que a amamos. Diante dessas palavras, Tink cobriu o rosto com as mãos e rompeu em lágrimas.
— Ah, obrigada, muito obrigada! — soluçou. — Esforço-me tanto para ajudar… Eu também amo vocês!
Fiquei atônito.
— É você a fada das idéias?
Ela anuiu com a cabeça, continuando a esconder o rosto.
— É Tink quem dirige este lugar — disse Atkin calmamente, reajustando os parâmetros de sua máquina em zero. — E leva o trabalho muito a sério.
Tink enxugou os olhos com as pontas dos dedos.
— Sei que vocês me dão esses nomes bobos — comentou. — Mas, de um modo ou de outro, vocês prestam atenção. Sabem por que quanto mais idéias têm, mais idéias lhes ocorrem? Porque a fada das idéias sabe que se tornou importante para vocês! Do mesmo modo que ela é importante para vocês, também vocês são importantes para ela.
Digo a todo mundo aqui que precisamos dar o melhor de nós, porque essas idéias não ficam simplesmente flutuando no espaço nulo, elas chegam até alguém! — Tink procurou o lencinho. — Desculpem as lágrimas. Não sei o que aconteceu comigo. Atkin, quero que esqueça que isso aconteceu…
Encarou-a, sério.
— Esquecer o quê, Tink?
Ela se virou para Leslie, explicando-se aos tropeções.
— É preciso que vocês saibam que não existe neste andar uma única pessoa que não seja mil vezes mais sábia que eu…
— A palavra-chave é simpatia — disse Atkin. — Todos nós fomos professores, gostamos deste trabalho e há momentos em que mostramos nele alguma habilidade, mas nenhum de nós tem o encanto, a simpatia de Tink. Sem isso, a melhor idéia do universo é como um vidro morto, e ninguém ligará para ela. Mas vocês recebem uma idéia da fada do sono, uma idéia tão simpática que não conseguem resistir, e então ela ganha vida, passa de um mundo para outro.
Essas duas pessoas podem ver-nos, pensei, de modo que ambas devem ser egos alternativos, aspectos que escolheram caminhos diferentes no desenho sob as águas. Mesmo assim, era inacreditável. A fada das idéias somos nós! Será possível que diferentes níveis de nós próprios passem existências inteiras tornando o conhecimento cristalino, na esperança de que o encontremos em nosso mundo?
Naquele momento, uma máquina, que não seria maior que um cão pastor, chegou até onde estávamos, com um zumbido, rolando sobre esteiras de borracha. Trazia nos braços mecânicos um lingote de cristal, ainda informe. Com as juntas a estalar devido ao peso, depôs o lingote, com cuidado, sobre a mesa de Atkin. A seguir, emitiu dois sinais sonoros, suaves, retornou ao corredor e retomou a direção de onde viera.
— É deste lugar que vêm… todas as idéias? As invenções? As respostas? — perguntei.
— Nem todas — respondeu Tink. — Não aquelas respostas que você obtém a partir de sua própria experiência. Só as inusitadas, que assustam e surpreendem, aquelas nas quais você tropeça quando não se acha hipnotizado pela vida cotidiana. Tudo que fazemos é passar pelo crivo possibilidades infinitas, separando aquelas que sabem que vocês apreciarão.
— E também idéias para histórias? — indaguei. — Idéias para livros? Fernão Capelo Gaivota surgiu daqui?
— A história sobre a gaivota era perfeita para você — disse Tink, franzindo a testa —, mas você era um escritor principiante, e não lhe daria atenção.
— Tink, eu estava prestando atenção! Seus olhos fuzilaram.
— Não me venha com essa! Você queria escrever, mas só se não precisasse dizer alguma coisa esquisita demais. Tive de fazer o impossível para chamar-lhe a atenção.
— O impossível?
— Foi preciso uma experiência psíquica para conseguir isso — respondeu a doce alma, revivendo sua frustração —, e não gosto de recorrer a expedientes assim. Mas se eu não tivesse gritado o título para você, se não tivesse feito a história passar como um filme diante de seus olhos, o pobre Fernão estaria condenado!
— Você não gritou nada.
— Bem, senti-me com se tivesse gritado, depois de tudo que fiz pra chegar até você.
Com que então, fora a voz de Tink que eu escutara! Aquela noite escura, há não tanto tempo, que não gritava o nome, mas o pronunciava com toda calma possível: Fernão Capelo Gaivota. E eu quase morto de medo, ouvindo o nome e sem ver quem o pronunciava.
— Obrigado por acreditar em mim — agradeci.
— Não há de quê — respondeu ela, apaziguada. — Mas aquela foi a última idéia para um livro que você recebeu de mim através de estratagemas psíquicos.
— Não precisamos mais de fogos de artifício — aleguei.
— Confiamos em você.
Atkin sorriu, virando-se para sua banca de trabalho.
— Tchau para vocês — despediu-se. — Até a próxima. — Ele parecia perceber alguma coisa muito engraçada nisso. Sacudiu a cabeça, rindo e perscrutando o vidro informe.
— Vamos revê-la? — Mentalmente, Leslie estendia a mão para o manete do hidravião.
A diretora da fundição de idéias levou a mão ao canto do olho.
— Claro que sim. Até lá, vou gravar anotações a respeito de todas as idéias que enviarmos. E lembrem-se: não acordem depressa demais… Façam muitas caminhadas, nadem bastante e tomem muitos banhos de chuveiro!
Despedimo-nos, e a sala derreteu-se, desvaneceu-se num caos com o qual já nos familiarizávamos. No instante seguinte, estávamos realmente de volta ao Martin, decolando da água, com a mão de Leslie no manete de potência. Pela primeira vez desde que havíamos iniciado aquela estranha aventura, decolamos felizes, em vez de agoniados.
— Pye, que coisa boa! — comentou Leslie. — Muito obrigada!
— Fico contente por ter feito vocês tão felizes antes de ir embora.
— Você já vai? — perguntei, subitamente alarmado.
— Por algum tempo — disse ela. — Vocês já sabem como encontrar os aspectos que desejam ver, os locais de aprendizado. Leslie sabe como se afastar quando chega a hora da partida, e você também aprenderá, Richard, quando passar a confiar em seus instintos. Não precisam mais de guia. — Sorriu como sorriem os instrutores para um aluno antes de seu primeiro vôo solo. — As possibilidades são infinitas.
Não resistam a ser atraídos para aquilo que mais lhes interessa, explorem juntos. Havemos de rever-nos.
Um sorriso, um clarão azul intenso, e Pye sumiu.