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13 A VENEZUELA

OS PESCADORES DE IRAPA

Descubro um mundo, gentes, uma civilização para mim inteiramente desconhecida. Esses primeiros minutos no solo venezuelano são tão emocionantes, que seria necessário um talento superior ao pouco que tenho para explicar, expressar, pintar a atmosfera do caloroso acolhimento que nos foi dado por esse povo generoso. A população é constituída de brancos ou pretos, a grande maioria de cor muito clara, do tom de uma pessoa de raça branca que passou muitos dias exposta ao sol; quase todos os homens têm as calças enroladas até a altura do joelho.

– Pobres rapazes, em que estado vocês estão! – exclamam os homens.

A aldeia de pescadores aonde chegamos chama-se Irapa, município de um Estado denominado Sucre. As moças, todas bonitas, de estatura pequena mas muito graciosas, as mulheres maduras, bem como as velhas, sem exceção, se transformam em enfermeiras, irmãs de caridade ou mães extremosas.

Reunidos no galpão de uma casa, onde penduraram cinco redes de lã e colocaram mesa e cadeiras, fomos lambuzados com manteiga de cacau da cabeça aos pés. Nem um centímetro de carne viva foi esquecido. Mortos de fome e de canseira, nosso jejum tão prolongado provocou-nos desidratação, e essa boa gente do litoral sabe que precisamos dormir, mas também comer em pequenas quantidades.

Enquanto estamos bem acomodados nas redes, dorme, não dorme, as enfermeiras improvisadas vão enfiando bocados de comida em nossas bocas, como se fôssemos criancinhas. Eu estava tão entregue, tão completamente desprovido de força quando me estenderam na rede, minhas chagas em carne viva bem besuntadas de manteiga de cacau, que me sentia como que derretendo, dormindo, comendo, bebendo, sem me dar conta exatamente do que se passava.

As primeiras colheradas de um pirão parecido com a nossa tapioca não foram aceitas pelo meu estômago vazio. Isso aconteceu também com os outros. Todos nós vomitamos, várias vezes, uma parte ou toda a comida que as mulheres introduziam em nossas bocas.

Os habitantes dessa aldeia são muito pobrezinhos. Contudo, cada um deles, sem exceção, contribui para nos ajudar. Dentro de três dias, graças aos cuidados dessa boa gente e graças à nossa juventude, estamos quase de pé. Deixamos as redes durante longas horas e, sentados no rancho coberto de folhas de coqueiro que proporcionam uma sombra fresca, meus camaradas e eu conversamos com esse povo. Não são bastante ricos para nos vestir todos de uma só vez. Formaram pequenos grupos de ajuda. Um se ocupa sobretudo de Guittou, outro de Deplanque, etc. Mais ou menos umas dez pessoas cuidam de mim.

Nos primeiros dias, eles nos vestiram com algumas roupas usadas, mas rigorosamente limpas. Agora, cada vez que podem, compram para nós uma camisa nova, uma calça, uma cinta, um par de chinelos. Entre as mulheres que tratam de mim estão algumas moças muito novas, de tipo índio mas já misturado com sangue espanhol ou português. Uma se chama Tibisay e a outra Nenita. Compraram para mim uma camisa, uma calça e um par de chinelos, que elas chamam aspargate. É uma sola de couro sem salto, com um tecido trançado para cobrir o pé. Só o peito do pé fica coberto, os dedos permanecem de fora e uma tira do tecido prende o calçado ao calcanhar.

– Não é preciso perguntar de onde vocês vêm. Pelas tatuagens, sabemos que vocês são fugitivos da penitenciária francesa.

Isso me emociona ainda mais. Como! Sabendo que somos homens condenados por delitos graves, evadidos de uma prisão cuja severidade eles conhecem pelos livros ou jornais, essas humildes criaturas acham natural nos socorrer e nos ajudar? Vestir alguém quando a gente é rica ou abastada, dar de comer a um estrangeiro que tem fome quando nada falta em casa para a família e para si próprio, é de qualquer maneira uma demonstração de bondade. Mas dividir em dois um pedaço de broa de milho ou de mandioca, espécie de torta cozida no forno, preparada por suas próprias mãos, e que não é bastante para si mesmo e para os seus, repartir a refeição frugal, que mais serve de subalimentação que de nutrição, com um estrangeiro e, ainda mais, um fugitivo da justiça, isto é admirável!

Hoje de manhã, toda a gente, homens e mulheres, está silenciosa. Eles parecem estar contrariados e preocupados. Que se passa? Tibisay e Nenita estão perto de mim. Pela primeira vez nestes últimos quinze dias pude fazer a barba. Já há oito dias somos hóspedes dessa gente que tem o coração na mão. Havendo-se formado uma pele muito fina sobre as minhas queimaduras, arrisquei-me a raspar a barba. Por causa da barba, as mulheres só faziam uma vaga idéia da minha idade. Agora estão satisfeitas de verem que sou jovem e o dizem sem rebuços. Tenho 35 anos, mas aparento só 28 ou trinta. Sim, estou percebendo que todas essas mulheres e esses homens hospitaleiros estão preocupados por nossa causa.

– Que está acontecendo? Fale, Tibisay, que foi que houve?

– Estamos esperando as autoridades de Güiria, uma aldeia vizinha de Irapa. Aqui não há chefe civil (comissário), mas, não se sabe como, a polícia soube que vocês estão aqui, e está para chegar.

Uma preta forte e bonita se aproxima, acompanhada por um moço de torso nu, calça branca enrolada nos joelhos, de corpo hercúleo e bem proporcionado. Chama-se Negrita – é um modo carinhoso de chamar as mulheres de cor, muito usado na Venezuela, onde não existe nenhum preconceito racial ou religioso.

– Señor Enriquez - diz Negrita -, a polícia vai chegar. Não sei se é para seu bem ou para seu mal. Você não quer se esconder por algum tempo na montanha? Este meu irmão pode levá-lo para uma casinha onde ninguém poderá encontrá-lo. Tibisay, Nenita e eu levaremos todo dia comida para você e comunicaremos as notícias.

Muito emocionado, quero beijar a mão dessa boa mulher, mas ela não deixa e, com muito gentileza, me dá um beijo na face.

Chegam uns cavaleiros a galope. Todos trazem um machete, espécie de facão que serve para cortar a cana-de-açúcar e que fica pendurado no lado esquerdo da cinta, como se fosse uma espada; do lado direito, um revólver dentro de sua capa. Eles apeiam. Um homem de cara mongólica, olhos oblíquos de índio, pele bronzeada, alto e seco, de seus quarenta anos, com um grande chapéu de palha de arroz na cabeça, aproxima-se de nós.

– Bom dia. Eu sou o chefe civil (o delegado de polícia).

– Bom dia, meu senhor.

– Vocês aí, por que não avisaram antes que tinham cinco fugitivos de Caiena? Já faz oito dias que estão aqui, pelo que me disseram.

– É que estávamos esperando que pudessem andar e estivessem curados das queimaduras.

– Viemos buscá-los e levá-los para Güiria. Um caminhão vai chegar mais tarde.

– Um cafezinho?

– Pois não, muito obrigado.

Sentados em círculo, todos tomam café. Olho para o comissário da polícia e seus ajudantes. Eles não têm cara de ruins. Tenho a impressão de que estão obedecendo a ordens, contrariados.

– Vocês são evadidos da Ilha do Diabo?

– Não, viemos de Georgetown, na Guiana Inglesa.

– Por que não ficaram por lá?

– A vida lá é muito dura.

Sorrindo, ele diz:

– Vocês pensaram que estariam melhor aqui do que com os ingleses?

– É verdade, porque somos latinos que nem vocês.

Um grupo de sete ou oito homens se aproxima do nosso círculo. À sua frente está um homem de cinqüenta anos, cabelos brancos, 1 metro e 75 ou mais de altura, pele cor de chocolate claro. Olhos imensos, negros, denotando inteligência e ânimo pouco comuns. Sua mão direita está colocada sobre o cabo de um machete pendurado na cinta.

– Chefe, que vai fazer com esses homens?

– Vou levá-los para a prisão de Güiria.

– Por que não os deixa viver aqui conosco? Cada família tomará conta de um.

– Não é possível, é ordem do governador.

– Mas eles não praticaram nenhum delito em território venezuelano.

– Sei disso. Mas, apesar de tudo, são homens muito perigosos; para terem sido condenados ao presídio de Caiena, devem ter cometido crimes muito graves. Além disso, são fugitivos sem documentos de identidade e a polícia francesa certamente vai pedir a extradição deles, quando souber que estão na Venezuela.

– Nós queremos que fiquem aqui com a gente.

– Não é possível, é ordem do governador.

– Tudo é possível. Que é que o governador sabe da vida desses desgraçados? Um homem nunca está completamente perdido. Qualquer que seja o mal que ele possa ter feito no passado, em certo momento da sua vida ele tem uma chance de se recuperar e de se transformar num homem bom e útil à sociedade. Não é verdade, digam vocês todos?

– É verdade – respondem os homens e as mulheres em coro. – Deixem os coitados aqui com a gente, vamos ajudá-los a refazer a vida deles. Em oito dias, já os conhecemos bem e estamos certos de que são bons rapazes.

– Gente mais civilizada do que nós colocou eles no calabouço, para que não pudessem mais praticar o mal – diz o comissário.

– Chefe, o que é que o senhor chama de civilização? O senhor pensa que, porque nós temos elevadores, aviões e trens subterrâneos, isso prova que os franceses são mais civilizados do que essa gente que nos recebeu e tratou? Pois fique sabendo que na minha opinião há mais civilização humana, mais riqueza de alma, mais compreensão em cada membro desta comunidade, que vive com simplicidade no meio da natureza, embora desprovida dos benefícios da civilização mecânica. Mas, se eles não têm o conforto do progresso, têm o sentido da caridade cristã muito mais desenvolvido que os pretensos civilizados do mundo. Prefiro um analfabeto deste povoado a um doutor em letras da Sorbonne de Paris, se este tiver um dia a alma do promotor que me fez condenar. O primeiro é sempre um homem, o segundo esqueceu que é.

– Eu compreendo, mas tenho que executar ordens. Está chegando o caminhão. Por favor, me ajude, tenha uma atitude sensata, para que tudo se passe sem incidentes.

Cada grupo de mulheres abraça aquele de que elas trataram. Tibisay, Nenita e Negrita me abraçam chorando. Cada homem nos aperta a mão, demonstrando assim o seu sentimento de tristeza pela nossa volta à prisão.

Até logo, gente de Irapa, gente nobre que teve a coragem de enfrentar e censurar as próprias autoridades para defender uns pobres-diabos até ontem desconhecidos. O pão que comi com vocês, o pão que vocês tiveram a coragem de tirar da própria boca para nos dar, esse pão, símbolo da fraternidade humana, foi para mim o sublime exemplo dos tempos antigos: “Não matar, fazer o bem aos que sofrem mais, mesmo à custa de privações. Ajudar sempre quem é mais infeliz do que você”. E, se mais tarde eu alcançar a liberdade, ajudarei os outros cada vez que puder, conforme me ensinaram os primeiros venezuelanos que encontrei.

E encontrei muitos outros depois.

O PRESÍDIO DE EL DORADO

Duas horas mais tarde, chegamos a uma grande aldeia, porto de mar que tem a pretensão de ser cidade: chama-se Güiria. O chefe civil (espécie de prefeito de departamento na França) nos entrega ele mesmo ao comandante da polícia. No comissariado; não nos tratam mal, mas nos submetem a longo interrogatório; e o encarregado, sujeito tapado, não quer de modo nenhum acreditar que tenhamos vindo da Guiana Inglesa, onde éramos livres. Além disso, quando nos pede para explicar o motivo da nossa chegada à Venezuela num estado de nudez e de esgotamento, depois de uma viagem tão curta de Georgetown ao golfo de Paria, ele diz que estamos caçoando dele com a nossa história do furacão.

– Dois grandes transportes de banana se perderam totalmente nesse tornado, um cargueiro carregado de minério de bauxita afundou com toda a equipagem e vocês, numa embarcação de 5 metros, aberta às intempéries, conseguiram se salvar? Quem vai acreditar nessa história? Nem mesmo o mendigo débil mental que pede esmola no mercado. Vocês estão mentindo, há qualquer coisa suspeita nesse negócio.

– O senhor pode pedir informações em Georgetown.

– Não quero bancar o idiota diante dos ingleses.

Esse escrivão ou investigador, sujeito cretino e cabeçudo, incrédulo e cheio de si, faz não sei que espécie de relatório, destinado não sei a quem. De qualquer maneira, certa manhã somos acordados às 5 horas, acorrentados, carregados num caminhão, com destino desconhecido.

Conforme expliquei, o porto de Güiria fica no golfo de Paria, diante de Trinidad. Tem a vantagem de estar na proximidade da foz do Orinoco, rio enorme, quase tão grande como o Amazonas.

Acorrentados num caminhão, onde estamos cinco camaradas mais dez policiais, rodamos para Ciudad Bolivar, importante capital do Estado do mesmo nome. A viagem, toda feita em estradas de terra, foi muito cansativa. Polícias e presos, apertados, sacudidos dentro do caminhão, pulavam mais do que numa montanha russa. A viagem durou cinco dias. À noite, dormíamos dentro do próprio caminhão e, de madrugada, partíamos novamente, numa corrida louca para um destino desconhecido.

A mais de 1 000 quilômetros do mar, numa floresta virgem cortada por uma faixa de estrada que vai de Ciudad Bolivar a El Dorado, foi que terminamos nossa viagem arrasadora.

Tanto prisioneiros como soldados se achavam bastante machucados quando chegamos à povoação de El Dorado.

Mas o que é El Dorado? A princípio, foi a esperança dos conquistadores espanhóis: vendo que os índios vindos dessa região traziam ornamentos de ouro, acreditaram cegamente que naquele lugar havia uma montanha de ouro, ou, pelo menos, metade ouro, metade terra. Resultado: hoje, El Dorado não é mais que uma aldeia à beira de um rio cheio de caribes ou piranhas, peixes carnívoros que em alguns minutos devoram um homem ou um animal; um rio também repleto de peixes-elétricos, ali chamados tembladores, que, girando em volta da sua presa, homem ou bicho, matam a vítima por meio de descargas elétricas e, a seguir, chupam o corpo em decomposição. No meio desse rio há uma ilha e, bem no centro, um verdadeiro campo de concentração. São as galés venezuelanas.

Essa colônia de trabalhos forçados é a coisa mais dura que já vi em toda a minha vida, a mais selvagem e a mais desumana, onde as bordoadas chovem constantemente sobre os presos. É um quadrado de apenas 150 metros de lado, cercado por fios de arame farpado. Cerca de quatrocentos homens dormem ali ao relento, pois não há mais que algumas folhas de zinco servindo de abrigo em volta do campo.

Sem que nos tenham dado qualquer palavra de explicação, sem justificarem essa decisão, somos incorporados ao presídio de El Dorado às 3 horas da tarde, quando ali chegamos, esgotados pela viagem, sempre acorrentados no caminhão. Às 3 e meia, sem que se faça a chamada ou o registro dos nossos nomes, os guardas acenam para nós e entregam uma pá para dois de nós e uma picareta para os outros três. Cercados por cinco soldados, de fuzil e nervo de boi na mão, comandados por um cabo de esquadra, somos levados, sob ameaça de pancadas, ao local de trabalho. Compreendemos logo que é uma espécie de demonstração de força, encenada pela guarda dessa penitenciária. Seria perigosíssimo não obedecermos, no momento. Mais tarde, veremos o que se pode fazer.

Chegando ao lugar onde os sentenciados estão trabalhando, mandam-nos abrir uma trincheira ao lado da estrada que estão construindo na floresta virgem. Obedecemos sem dizer palavra e trabalhamos sem levantar a cabeça, cada um de acordo com sua capacidade. Isso não nos impede de ouvir os insultos e as pancadas selvagens que os demais prisioneiros recebem a todo momento. Nenhum do nosso grupo recebe uma só chicotada. Essa sessão de trabalho forçado, que nos proporcionaram logo após a nossa chegada, era sobretudo destinada a nos fazer ver como são tratados os prisioneiros.

Era um sábado. Depois do trabalho, cobertos de suor e de poeira, fomos incorporados a esse campo de prisioneiros, sem o menor registro ou formalidade.

– Os cinco caienenses, por aqui – é o cabo dos presos que está falando. É um mestiço de 1 metro e 90 de altura. Tem o seu nervo de boi na mão. Esse imundo brutamontes é o encarregado da disciplina no recinto do campo.

Indicaram-nos o lugar onde devemos pendurar as redes, perto da porta de entrada do campo, ao ar livre. Mas ali, pelo menos, há um teto de folhas de zinco e, assim, estaremos mais ou menos abrigados da chuva e do sol.

A grande maioria dos prisioneiros é colombiana e os restantes são venezuelanos. Nenhum dos campos disciplinares das penitenciárias francesas pode se comparar com o horror desta colônia de trabalho. Um burro morreria com os maus-tratos suportados por esses homens. Contudo, quase todos aparentam saúde, porque há uma coisa: a alimentação destinada aos sentenciados, aqui, é muito farta e apetitosa.

Nosso grupo reúne-se num pequeno conselho de guerra. Se um de nós for espancado por um soldado, o melhor a fazer é parar de trabalhar, debruçar-se no chão e, seja qual for o tratamento infligido, não se levantar. De qualquer maneira, terá que aparecer uma autoridade, à qual poderemos perguntar como e por que estamos neste campo de trabalhos forçados sem ter cometido qualquer delito. Os dois libertos, Guittou e Barrière, dizem que vão pedir para serem devolvidos à França. A seguir, decidimos chamar o cabo dos presos. Sou eu que devo falar com ele. Ele é chamado de “Negro Blanco”. Guittou vai procurá-lo. O carrasco chega, sempre de chicote na mão. Nós cinco, franceses, colocamo-nos em círculo em volta dele.

Sou eu quem toma a palavra:

– Queremos dizer a você umas poucas palavras: comprometemo-nos a não cometer jamais qualquer infração ao regulamento, assim você não terá motivo para esbordoar qualquer um de nós. Mas, como reparamos que você agride qualquer um sem o menor motivo, nós chamamos você para avisar que, no dia que você espancar um de nós, é um homem morto. Está entendido?

– Sim – diz o Negro Blanco.

– Mais uma advertência.

– O que é? – diz ele, com voz rouca.

– Se você tiver que repetir o que acabamos de dizer, diga isso a um oficial e não a um soldado.

– Está entendido – e ele se retira.

Esta cena se passa no domingo, dia de folga dos presos. Aparece um sujeito cheio de galões.

– Como é que você se chama? – diz ele para mim.

– Papillon.

– É você o chefe dos caienenses?

– Somos cinco e todos são chefes.

– Por que foi você que tomou a palavra para falar com o cabo dos presos?

– Porque sou eu quem fala melhor espanhol.

Agora é um capitão da guarda nacional que fala comigo. Diz que não é ele o comandante da guarda. Há dois chefes mais graduados que ele, mas não estão aqui. Desde que chegamos, é ele quem está no comando. Os dois mais graduados chegarão terça-feira.

– Você ameaçou, em seu nome e no dos seus companheiros, matar o cabo dos presos se ele batesse num de vocês. É verdade?

– É verdade, e vocês têm que nos levar a sério. Mas também disse a ele que não daríamos qualquer pretexto para justificar um castigo corporal. O senhor sabe, capitão, que nenhum tribunal nos condenou, pois não cometemos nenhum delito na Venezuela.

– Nada sei a respeito. Vocês chegaram no campo sem qualquer papel, apenas com uma nota do diretor que está na aldeia: “Pôr esses homens para trabalhar assim que chegarem”.

– Pois, senhor capitão, já que é militar, deve ser bastante justo para, enquanto aguarda a chegada dos chefes, dar ordem aos soldados para nos darem um tratamento diferente do que dão aos outros presos. Afirmo mais uma vez que não somos nem podemos ser condenados, porque não cometemos nenhum delito na Venezuela.

– Vou dar ordens nesse sentido. Espero que não tenham me enganado.

Tenho tempo de observar os presos toda a tarde desse primeiro domingo. A primeira coisa que me espanta é que todos estão bem de saúde. Em segundo lugar, as pancadas se tornaram tão rotineiras, que eles se acostumaram com elas; hoje, por exemplo, domingo, dia de descanso, em que poderiam facilmente evitar as bordoadas comportando-se bem, parece que eles encontram um prazer masoquista em brincar com o fogo. Não param de fazer coisas proibidas: jogar dados, ter contato sexual com uns jovens nas privadas, roubar um companheiro, dizer obscenidades às mulheres que vêm da aldeia trazer doces ou cigarros aos presos. Elas também fazem trocas. Uma cesta trançada, um objeto esculpido, por algum dinheiro ou pacotes de cigarros. Pois bem, há alguns presos que dão um jeito de pegar através do arame farpado aquilo que a mulher oferece para vender e saem correndo sem lhe entregar o objeto negociado, escondendo-se no meio dos outros. Conclusão: os castigos corporais são aplicados tão indiscriminadamente e por motivos fúteis, que o couro dos presos está completamente curtido pelos chicotes; reina o terror no campo de concentração, sem qualquer benefício para a ordem ou a sociedade, e a brutalidade de nada serve para reeducar esses desgraçados.

Contudo, a reclusão na Ilha de Saint-Joseph, com o seu silêncio obrigatório, é bem mais terrível do que isto. Aqui, o medo é momentâneo e o fato de poder conversar à noite, fora das horas de trabalho, bem como a alimentação, rica e abundante, permitem que um homem chegue ao fim da sua pena, que em nenhum caso pode ultrapassar cinco anos.

Passamos o domingo fumando e tomando café, sempre conversando só entre nós. Alguns colombianos se aproximam, mas nós os afastamos, com boas maneiras porém com firmeza. É preciso que nos considerem prisioneiros à parte, do contrário estamos fritos.

No dia seguinte, segunda-feira, às 6 horas, depois de haver comido fartamente, vamos para o trabalho com os outros. Eis como se prepara o trabalho: duas fileiras de homens, frente a frente, cinqüenta prisioneiros, cinqüenta soldados. Um soldado para cada preso. Entre cada fileira, cinqüenta ferramentas: picaretas, pás ou machados. As duas filas de homens se observam: os prisioneiros, angustiados, e os soldados, nervosos e sádicos.

O sargento grita: “Fulano, picareta!”

O desgraçado se abaixa às pressas e, no momento em que agarra a picareta para lançá-la ao ombro e partir correndo para o trabalho, o sargento grita: “Número”, o que eqüivale a dizer: “Soldado, um, dois, etc.” O soldado pula atrás do coitado e’ o açoita com seu nervo de boi. Essa cena horrorosa repete-se duas vezes por dia. No caminho entre o campo e o local de trabalho, a gente tem a impressão de que são tropeiros, tocando seus burros a chicote.

Estávamos gelados de pavor e apreensivos, aguardando a nossa vez. Felizmente, conosco foi diferente.

– Os cinco caienenses, por aqui! Os mais moços peguem estas picaretas e vocês, os mais velhos, estas duas pás.

Sem correr mas em marcha batida, vigiados por quatro soldados e um cabo, vamos para o campo de trabalho, uma clareira na floresta. Esta jornada foi mais longa e mais desesperadora que a primeira. Alguns homens especialmente manjados, no limite das suas forças, gritavam como loucos e imploravam de joelhos que não lhes batessem mais. À tarde, deviam limpar os restos de uma queimada, juntando numa só pilha os tocos e os galhos ainda fumegantes. Outros deviam roçar atrás deles. E, assim, umas oitenta ou cem fogueiras já quase consumidas deviam se transformar num único braseiro no centro do campo. A golpes de nervo de boi, cada soldado espancava seu prisioneiro para que recolhesse os resíduos e os levasse correndo para o meio da área. Essa corrida diabólica provocava em alguns deles verdadeira crise de loucura e, na sua precipitação, eles agarravam às vezes os galhos pelas pontas ainda em brasa. As mãos queimadas, estupidamente açoitados, pisando descalços sobre galhos ou brasas ainda fumegantes, essa fantástica cena durou três horas. Nenhum de nós foi convidado a participar da limpeza dessa clareira recém-desmoitada. Foi melhor assim, porque havíamos decidido, trocando curtas frases, sem levantar a cabeça, enquanto trabalhávamos na enxada, que saltaríamos sobre os cinco praças, inclusive os cabos, que os desarmaríamos e daríamos tiros nessa súcia de brutos.

Hoje, terça-feira, não saímos para o trabalho. Fomos chamados ao escritório dos dois majores da guarda nacional. Os dois oficiais estão muito surpresos por estarmos em El Dorado sem qualquer documento que comprove a decisão de algum tribunal. De qualquer maneira, eles nos prometem pedir amanhã explicações ao diretor da colônia penal.

Não demorou muito. Esses dois majores da guarda da penitenciária são certamente muito severos, pode-se mesmo dizer que exageram na repressão, mas são corretos, pois exigiram que o diretor da colônia viesse pessoalmente nos dar explicações.

Aqui está ele, diante de nós, acompanhado pelo seu cunhado, Russian, e pelos dois oficiais da guarda nacional.

– Franceses, eu sou o diretor da colônia de El Dorado. Vocês quiseram falar comigo. Que desejam?

– Em primeiro lugar, qual foi o tribunal que, sem nos ouvir, nos condenou a cumprir uma pena nesta colônia de trabalhos forçados? Por quanto tempo e por qual delito? Chegamos por mar a Irapa, na Venezuela. Não cometemos o menor delito. Então, o que estamos fazendo aqui? E como se justifica que sejamos obrigados a trabalhar?

– Em primeiro lugar, estamos em guerra. Portanto, precisamos saber exatamente quem vocês são.

– Muito bem, mas isto não justifica a nossa incorporação neste presídio.

– Vocês são fugitivos da justiça francesa. Por isso, precisamos saber se vocês estão sendo reclamados por ela.

– Certo; mas volto a insistir: por que nos trata como se tivéssemos uma pena a cumprir?

– Por enquanto, vocês estão aqui devido a uma lei sobre vagabundos e meliantes; vocês estão aqui em depósito, aguardando esclarecimentos e documentação.

A discussão poderia ter durado muito tempo, se um dos oficiais não houvesse dado a sua opinião e resolvido o caso:

– Diretor, honestamente, não podemos tratar esses homens como os outros presos. Sugiro que, enquanto Caracas não está a par do assunto, encontremos um meio de empregá-los em outra coisa que não seja a construção da estrada.

– São homens perigosos. Eles ameaçaram matar o cabo de presos se este batesse neles. É ou não é verdade?

– Sim, senhor diretor, não somente o ameaçamos, mas qualquer um que queira se divertir batendo em nós será assassinado…

– E se for um soldado?

– A mesma coisa. Nada fizemos para ter de agüentar um regime desses. Nossas leis e nossos regimes penitenciários são talvez mais horríveis e desumanos que os seus, mas sermos esbordoados como animais é uma coisa que não podemos aceitar.

O diretor, virando-se triunfalmente para os oficiais, diz:

– Os senhores vêem que esses homens são muito perigosos!

O major da guarda mais idoso hesita um ou dois segundos e, para grande espanto de todos, declara:

– Esses fugitivos franceses têm razão. Nada na Venezuela justifica que eles sejam obrigados a cumprir uma pena e a obedecer aos regulamentos desta colônia. Dou razão a eles. Por isso, das duas, uma: ou o senhor arranja para eles um trabalho separado dos outros presos, ou eles não saem para trabalhar. Misturados com os outros, serão um dia agredidos por um soldado.

– Vamos tratar do assunto. No momento, eles que fiquem no campo. Amanhã direi o que se deve fazer.

E o diretor se retira, acompanhado pelo cunhado.

Agradeço aos oficiais. Eles nos dão cigarros e nos prometem ler, no relatório da noite, uma nota aos oficiais e soldados, advertindo-os de que não devem nos bater, sob qualquer pretexto.

Já estamos aqui há oito dias. Não trabalhamos mais. Ontem, domingo, passou-se uma cena pavorosa. Os colombianos tiraram a sorte para saber quem deveria matar o cabo Negro Blanco. A sorte caiu sobre um homem de trinta anos. Deram-lhe uma colher de ferro, com o cabo afiado sobre o cimento em forma de punhal pontiagudo e corte nos dois lados. Corajosamente, o homem manteve o pacto. Acaba de dar três estocadas, visando o coração do Negro Blanco. O cabo é levado com urgência para o hospital, enquanto o agressor é amarrado a um poste no meio do campo. Enlouquecidos, os soldados revistam tudo, procuram em toda parte outras armas. Desvairado, um deles, como eu não tirasse a calça bastante depressa, me deu uma lambada na coxa com a sua chibata. Barrière agarra um banco e o balança sobre a cabeça do soldado. Outro soldado lhe dá um golpe de baioneta que lhe atravessa o braço e, no mesmo momento, eu derrubo a sentinela que me bateu, com um pontapé na barriga. Já agarrei o fuzil no chão, quando se ouve uma ordem gritada com força:

– Parados! Não toquem nos franceses. Francês, largue o fuzil!

É o capitão Flores, aquele que nos recebeu no primeiro dia, que acaba de berrar essa ordem.

A intervenção desse oficial chegou no exato momento em que eu ia atirar no miserável. Se não fosse isso, teríamos matado um ou dois soldados mas também perdido a vida, estupidamente, no sertão da Venezuela, no fim do mundo, nesse presídio onde nada tínhamos que fazer.

Graças à enérgica intervenção do capitão, os soldados se afastam do nosso grupo e vão saciar mais adiante o seu desejo de carnificina. É então que assistimos à cena mais abjeta que se possa imaginar.

O infeliz amarrado ao poste no centro do campo é moído de pancadas, sem interrupção, por três homens ao mesmo tempo, um cabo e dois soldados. O suplício dura das 5 horas da tarde até o dia seguinte, às 6 da manhã. É muito demorado matar um homem somente com pancadas no corpo. O massacre foi interrompido algumas vezes, por alguns segundos, unicamente para perguntarem ao infeliz quem eram seus cúmplices, quem lhe fornecera a colher afiada. O homem não denunciou ninguém, nem mesmo com a promessa de pararem o suplício se falasse. Perdeu muitas vezes os sentidos. Atiraram-lhe baldes de água para reanimá-lo. O cúmulo da selvageria foi às 4 horas da manhã. Percebendo que a pele já não reagia sob os golpes, nem mesmo por contrações, os carrascos pararam de bater.

– Ele está morto? – pergunta um oficial.

– Não se sabe.

– Desamarrem ele e ponham de quatro.

Seguro por quatro homens, ele está mais ou menos de quatro patas no chão. Então um dos carrascos lhe manda uma pancada de nervo de boi justamente no rego das nádegas e a ponta do látego atinge e rasga as partes sexuais. Esse golpe magistral do refinado torturador consegue arrancar ao desgraçado um urro de dor.

– Continuem – diz o oficial -, ele não está morto.

Bateram nele até o raiar do dia. Essa tortura medieval, que teria matado um cavalo, não conseguiu liquidar com o homem. Depois de uma hora de descanso e vários baldes de água fria, ele consegue levantar-se, ajudado por dois soldados. Chega a ficar de pé sozinho, por um momento. O enfermeiro chega com um copo na mão:

– Beba esse purgante – diz o oficial -, você ficará bom.

O sujeito hesita, mas logo engole o purgante de uma só vez. Um minuto depois, ele desmorona para sempre. Agonizante, sai-lhe da boca uma frase:

– Imbecil, eles te envenenaram.

Inútil dizer que nenhum dos prisioneiros (nem os do nosso grupo) teve coragem de mexer um dedinho que fosse. Todo mundo, sem exceção, estava aterrorizado. Foi a segunda vez na minha vida que tive vontade de morrer. Durante alguns minutos fui tentado por um fuzil que um soldado segurava distraidamente não longe de mim. O que me reteve foi o pensamento de que seria certamente morto antes de poder manobrar a culatra e atirar na súcia de vândalos.

Um mês depois, o Negro Blanco era novamente, e mais do que nunca, o terror do campo. Contudo, estava escrito o seu destino, que era o de ser assassinado em El Dorado. Um soldado da guarda, certa noite, apontou-lhe a arma, quando passava perto dele:

– Fique de joelhos – ordena o soldado.

Negro Blanco obedece.

– Faça uma oração, você vai morrer.

Deixou-o fazer uma curta oração e o abateu com três baías de fuzil. Os prisioneiros diziam que o soldado o havia matado porque estava enojado de ver o carrasco bater como um tarado nos pobres prisioneiros. Outros contavam que Negro Blanco havia denunciado o soldado aos seus superiores, dizendo que o conhecera em Caracas como ladrão, antes do serviço militar. Foi enterrado não longe do homem que tentara matá-lo, ladrão certamente, mas homem de coragem e de valor pouco comuns.

Todos esses acontecimentos impediram que se tomasse uma decisão a nosso respeito. Aliás, os outros prisioneiros ficaram quinze dias sem sair para trabalhar. O golpe de baioneta que Barrière recebeu foi muito bem tratado por um médico da aldeia.

No momento, somos respeitados. Chapar partiu ontem para a aldeia, para trabalhar como cozinheiro do diretor. Guittou e Barrière foram libertados, pois chegaram da França informações sobre nós todos. Como eles já haviam cumprido a pena, foram postos em liberdade. Eu tinha dado um nome falso, italiano; mas veio a ficha com meu verdadeiro nome, impressões digitais e indicação da minha pena de prisão perpétua; também a informação de que Deplanque e Chapar estão condenados a vinte anos. Muito orgulhoso, o diretor nos comunica as notícias recebidas da França:

– Todavia – diz ele -, já que vocês não cometeram nenhum delito na Venezuela, vamos segurar vocês durante algum tempo e depois libertá-los. Mas, para isso, vocês precisam trabalhar e comportar-se bem: vocês estão em período de observação.

Conversando comigo, os oficiais haviam-se queixado várias vezes da dificuldade de obter legumes frescos na aldeia. A colônia tem um campo de agricultura, mas não produz legumes. Só cultiva arroz, milho, feijão preto e nada mais. Ofereço-me para fazer uma horta, se me derem as sementes. Eles aceitam.

Primeira vantagem: saímos do campo. Deplanque e eu, e, como chegaram mais dois deportados presos em Ciudad Bolivar, eles se juntam a nós. Um é parisiense, chama-se Totó, e o outro é natural da Córsega. Trabalhando em equipe de quatro, fazemos duas casinhas bem construídas em madeira e cobertas de folhas de palmeira. Numa delas, moramos Deplanque e eu; na outra, moram os dois companheiros.

Totó e eu construímos umas mesas bastante altas, cujas pernas são mergulhadas em latas cheias de gasolina, para evitar que as formigas subam e comam as sementes. Logo dispomos de brotos robustos de tomates, berinjelas, melões e ervilhas verdes. Começamos a replantá-los em canteiros comuns, pois agora os brotos são bastante fortes para resistir às formigas. Para plantar os novos tomateiros, cavamos em volta uma espécie de fosso, que será mantido cheio de água. Dessa maneira, a terra ficará sempre úmida e os parasitas, muito numerosos nesta terra virgem, não poderão chegar até as nossas plantas.

– Ora veja, o que é isto? – diz Totó. – Olhe como brilha esta pedrinha.

– Lave bem ela, meu chapa.

E ele me passa a pedra. É um pequeno cristal do tamanho de um grão-de-bico. Depois de lavado, brilha ainda mais no lado em que a sua ganga está quebrada, pois a pedra está recoberta por uma espécie de casca de arenito muito dura.

– Será que não é um diamante?

– Cale essa boca, Totó. Não é hora de falar, se for um brilhante. Você já pensou se a gente tivesse a sorte de encontrar uma mina de diamantes? Vamos esperar até de noite e esconderei esse troço.

À noite, estou dando lições de matemática a um cabo (hoje coronel, que se prepara para o exame de oficialato. Esse homem, dotado de nobreza de alma e retidão a toda prova (que me demonstrou durante mais de 25 anos de amizade), é agora o Coronel Francisco Bolagno Utrera.

– Chico, o que é isto? É um cristal de rocha?

– Não – diz ele, após examinar minuciosamente a pedra. – É um diamante. Esconda bem e não deixe ninguém ver. Onde foi que você encontrou?

– Na minha plantação de tomates.

– Isso é meio esquisito. Será que você não o pegou quando tirava água do rio? Você não arrasta o balde e tira um pouco de areia com a água?

– Justamente, é o que acontece.

– Então é isso. Você tirou do rio Caroni esse brilhante. Você pode procurar, mas preste atenção para ver se não pegou outras pedrinhas, porque a gente nunca encontra uma pedra preciosa isolada. Onde se encontra uma, é garantido que há outras mais.

Totó se põe a trabalhar com afinco.

Nunca trabalhou tanto em sua vida. Os nossos dois companheiros, a quem nada havíamos contado, diziam para ele:

– Pára de trabalhar, Totó! Você quer se rebentar, trazendo tantos baldes de água do rio! E você ainda traz areia com a água!

– É para que a terra fique mais leve, meu chapa – respondia Totó. – Misturando com areia, ela filtra melhor a água.

Totó, apesar das brincadeiras de nós todos, continua a carregar baldes de água sem parar. Certa vez, era meio-dia, ele tropeça e se esparrama diante de nós que estamos sentados na sombra. E, no meio da areia derramada, aparece uma pedra com duas vezes o tamanho de um grão-de-bico. A ganga, mais uma vez, está quebrada; se não fosse isso, não se veria a pedra. Mas Totó se trai, escondendo a pedra muito depressa.

– Ora, ora – diz Deplanque, será que não é um diamante? Uns soldados me disseram que esse rio tem muito ouro e diamantes.

– É por isso que eu carrego tanta água! Vocês vêem que não sou tão cretino como vocês pensam! – diz Totó, satisfeito de poder finalmente explicar por que motivo ele trabalha tanto.

Encurtando a história, em seis meses Totó reúne de 7 a 8 quilates de brilhantes. Quanto a mim, tenho uma dúzia deles, além de mais de trinta pedrinhas menores, e o negócio está-se tornando “comercial”, segundo a gíria dos mineradores. E um belo dia encontro uma pedra de mais de 6 quilates, a qual, lapidada mais tarde em Caracas, rendeu mais ou menos 4 quilates. Essa pedra está ainda comigo e eu a trago sempre no dedo, nunca a tiro. Deplanque e Antartaglia também conseguiram juntar algumas pedras preciosas. Ainda estou de posse do canudo que usava na penitenciária e coloquei as pedras dentro dele. Também os meus companheiros fabricaram umas imitações de canudos em chifre de boi, dentro dos quais eles guardam suas pequenas fortunas.

As autoridades não sabem de nada, salvo o futuro coronel, o cabo Francisco Bolagno. Os tomates e as outras plantas cresceram. Os oficiais pagam escrupulosamente pelos legumes que levamos todos os dias à sua mesa.

Gozamos de relativa liberdade. Trabalhamos sem qualquer vigilante e dormimos em nossas duas casinhas. Nunca mais vamos para o campo de trabalho. Somos respeitados e bem tratados. Naturalmente, sempre que se apresenta a oportunidade, insistimos com o diretor para que nos ponha em liberdade. Cada vez, ele responde “logo mais”, porém já estamos aqui há oito meses e nada acontece. Começo então a falar de fugir. Totó não quer saber de nada. Os outros também. Para estudar o rio, arranjei uma linha de pesca e uma isca. Assim também posso vender peixe, especialmente as famosas piranhas, peixes carnívoros que chegam a pesar 1 quilo e cujos dentes estão dispostos como os dos tubarões, e são tão terríveis como os deles ou ainda mais.

Hoje deu-se um alarma geral. Gaston Duranton, o Torto, fugiu, carregando 70 000 bolívares do cofre do diretor. Esse duro tem uma história original.

Ainda criança, achava-se no reformatório da Ilha de Oléron e trabalhava como sapateiro na oficina. Um dia, rebenta-se a correia de couro que segura o calçado sobre o joelho e passa por baixo do pé. O menino desloca o quadril. Mal tratado, o quadril solda-se pela metade e ele fica torto por toda a sua vida de menino e parte de sua vida adulta, como veremos mais adiante. Vai para a colônia penal aos 25 anos. Não é de admirar que, depois de longas temporadas em reformatórios de menores, ele tenha se transformado em experimentado ladrão.

Toda a gente o chama de Torto. Quase ninguém conhece seu verdadeiro nome, Gaston Duranton. Torto ficou, Torto é chamado. Apesar de manquitola, ele consegue escapar do presídio e chegar à Venezuela. Deu-se isto no tempo do tirano Gómez. Poucos fugitivos sobreviveram à sua repressão. Houve algumas exceções: por exemplo, o Dr. Bougrat, porque ele salvou toda a população da ilha das pérolas margarita, ameaçada por uma epidemia de febre amarela.

O Torto, detido pela “sagrada” (era o nome da polícia especial do ditador Gómez), foi mandado trabalhar nas estradas da Venezuela. Os prisioneiros franceses e venezuelanos eram mantidos acorrentados a bolas de ferro que traziam gravada a flor-de-lis das galés de Toulon. Quando os franceses se queixavam, os guardas diziam: “Mas estas correntes, estas algemas, estas bolas vêm do seu país! Vejam só a flor-de-lis!” Para encurtar, o Torto evadiu-se do campo volante onde trabalhava na abertura da estrada. Foi recapturado em alguns dias e devolvido ao presídio ambulante. Diante de todos os presos, deitam-no pelado, de bruços, e o condenam a receber cem golpes de nervo de boi.

É muito raro que um homem resista a mais de oitenta golpes. A sorte que ele tem é de ser magro, pois, deitado de bruços, as pancadas não podem lhe atingir o fígado, órgão que rebenta se for atingido diretamente. É costume, depois dessa flagelação, em que as nádegas ficam retalhadas, jogar sal sobre a carne lanhada e deixar o homem esticado ao sol. Contudo, cobrem-lhe a cabeça com uma folha de bananeira ou outra planta, pois admitem que o homem morra de pancadas, mas não de insolação.

O Torto sai vivo desse suplício digno da Idade Média e, quando se levanta pela primeira vez, verifica, muito surpreso, que não está mais torto. As pancadas quebraram-lhe a soldadura mal feita e lhe colocaram a anca exatamente no lugar. Soldados e prisioneiros gritam “Milagre!”, ninguém compreende o que aconteceu. Nesse país supersticioso, acreditam que foi Deus que o recompensou por ter resistido dignamente às torturas. A partir desse dia, tiram-lhe os ferros e a bola. Passa a ser protegido e fica encarregado da distribuição de água aos trabalhadores forçados. Ele então se desenvolve fisicamente e, comendo bastante, transforma-se num rapaz grande e atlético.

A França veio a saber que os sentenciados fugidos trabalhavam na construção de estradas na Venezuela. Pensando que essas energias seriam melhor aproveitadas na Guiana Francesa, o Marechal Franchet d’Esperey foi enviado como embaixador especial para solicitar ao ditador – muito feliz com essa mão-de-obra gratuita – a devolução desses homens à França.

Gómez aceita e, em Puerto Cabello, um navio vem buscá-los. Aí acontecem brincadeiras terríveis e de mau gosto, pois há homens que procedem de outros campos de trabalho e não conhecem a história do Torto.

– Eh! Marcel, como vai?

– Quem é você?

– O Torto.

– Você está rindo, não deboche – respondiam todos os outros, vendo esse rapaz forte, bem aprumado, sobre pernas firmes.

O Torto, que era moço e brincalhão, durante todo o tempo que durou o embarque, não deixou de interpelar todos os seus conhecidos. E todos, hem entendido, não podiam compreender como o Torto se havia endireitado. De volta à Guiana, fiquei sabendo da história pela sua própria boca e outros presidiários confirmaram o episódio na Ilha Royale.

Evadido de novo em 1943, veio parar em El Dorado. Como já vivera na Venezuela – e certamente não contou que fora como prisioneiro -, arranjou logo o lugar de cozinheiro, substituindo Chapai”, que passou a jardineiro. Trabalhava na casa do diretor, na aldeia situada na outra margem do rio.

No escritório do diretor se achava o cofre e o dinheiro da colônia. Naquele dia, roubou 70 000 bolívares, que correspondiam então a mais ou menos 20 000 dólares. Foi isso que provocou a algazarra em nossa horta: o diretor, o cunhado do diretor, os dois majores da guarda nacional. O diretor queria nos mandar imediatamente para o campo de concentração. Os oficiais recusaram, talvez interessados no fornecimento de legumes e verduras. Conseguimos finalmente convencer o diretor de que nada sabíamos do caso; se tivéssemos sabido, teríamos fugido com o Torto, talvez, mas afinal de contas o nosso objetivo era ficar na Venezuela e não na Guiana Inglesa, único lugar para onde ele poderia ter fugido. Poucos dias depois, guiados pelos urubus que o devoravam, os policiais encontraram o seu cadáver a mais de 70 quilômetros dentro da mata, bem perto da fronteira inglesa.

A primeira versão, a mais cômoda, foi que ele fora assassinado pelos índios. Muito mais tarde, um homem foi preso em Ciudad Bolivar. Estava trocando notas de 500 bolívares, novas demais. O banco que havia entregue o dinheiro ao diretor da colônia penal de El Dorado anotara os números, o que comprovou que se tratava das mesmas notas. O sujeito confessou e deu o nome de dois cúmplices, que nunca foram encontrados. Essa foi a vida e foi assim que acabou meu bom amigo Gaston Duranton, alcunhado Torto.

Reservadamente, alguns oficiais mandaram uns prisioneiros procurar ouro e brilhantes no rio Caroni. Os resultados foram positivos, não espetaculares, mas suficientes para estimular as pesquisas. Na parte baixa da minha horta, dois homens trabalham o dia todo com a bateia, uma espécie de chapéu chinês invertido, a ponta para baixo e a beirada para cima. Enchem a bateia de terra e vão mexendo. Como o diamante é mais pesado que os demais elementos que o cercam, ele fica no fundo do “chapéu”. Já houve um morto: estava roubando seu “patrão”. Em conseqüência desse pequeno incidente, foram suspensos os trabalhos nessa “mina” clandestina.

No campo, há um sujeito com o torso todo tatuado. No pescoço está escrito: “Merda para o barbeiro”. É paralítico do braço direito. Sua boca torta e a língua quase sempre pendente e babosa indicam claramente que sofreu um ataque de hemiplegia. Onde foi que isso aconteceu? Ninguém sabe. Estava aqui antes da nossa chegada. O certo é que é um sentenciado ou um deportado que se evadiu. No peito está tatuado “Bat d’Af” (Batalhão Penitenciário da África). Esta tatuagem e a tal de “Merda para o barbeiro” que se lê na nuca comprovam, sem qualquer dúvida, que se trata de um duro.

Ele é chamado Picolino. pelos guardas e pelos presos. É bem tratado e recebe escrupulosamente a sua comida, três vezes ao dia, ganhando também cigarros. Seus olhos azuis são muito expressivos e seu olhar nem sempre é triste. Quando olha para alguém de quem gosta, suas pupilas brilham de alegria. Compreende tudo o que lhe dizem, mas não pode nem falar nem escrever: o braço direito paralisado não o permite, e na mão esquerda faltam o polegar e mais dois dedos. Esta ruína humana fica grudada nos fios de arame farpado, esperando para me ver passar com os legumes, pois é o caminho que tomo para ir à cantina dos oficiais. Por isso, toda manhã, quando passo com meus legumes, paro um pouco para conversar com Picolino. Encostado nos fios de arame, ele me olha com seus belos olhos azuis cheios de vida, brilhando num corpo quase morto. Eu lhe digo umas palavras amáveis e ele, com a cabeça ou as pálpebras, me faz compreender que “pegou” toda a conversa. Seu pobre rosto paralisado ilumina-se por um momento e seus olhos brilham, parecendo querer dizer muitas coisas. Levo sempre para ele alguns petiscos: uma salada de tomate, alface ou pepino, bem preparada com molho vinagrete, um pequeno melão ou um peixe assado na brasa. Ele não tem fome, porque a comida é abundante no presídio colombiano, mas assim pode variar um pouco o cardápio. Também sempre lhe dou alguns cigarros. Esta rápida visita ao Picolino se transformou em rotina, tanto que os soldados e os presos já estão chamando ele de “filho do Papillon”.

A LIBERDADE

É uma coisa esquisita, mas os venezuelanos são tão simpáticos, tão cativantes, que resolvi acreditar neles. Não quero mais fugir. Embora prisioneiro, aceito essa situação anormal, esperando um dia fazer parte desse povo. Pode parecer um paradoxo. A sua maneira selvagem de tratar os presos não deveria me encorajar a viver nessa terra, mas percebo que eles acham coisa normal os castigos corporais, tanto os presidiários como os soldados. Se um soldado comete uma falta, também recebe umas chicotadas. E, alguns dias depois, esse mesmo soldado conversa com o mesmo cabo, sargento ou oficial que o havia espancado, com a maior naturalidade.

Esse bárbaro sistema é uma reminiscência da ditadura Gómez, que assim tratou o povo venezuelano durante longos anos. O costume sobreviveu, de modo que um chefe civil ainda castiga os habitantes que estão sob a sua jurisdição dessa maneira, isto é, com algumas chibatadas.

É graças a uma revolução que estou em vésperas de ser libertado. Um golpe de Estado, meio civil e meio militar, derrubou da sua poltrona o presidente da República, General Angarita Medina, um dos maiores liberais que a Venezuela conheceu. Era tão bom, tão democrata, que não soube ou não pôde resistir ao golpe de Estado. Ao que dizem, recusou-se categoricamente a derramar o sangue de seus patrícios para se manter no poder. É certo que esse grande militar democrata não estava a par do que se passava em El Dorado.

De qualquer maneira, um mês após a revolução, todos os oficiais são substituídos. É aberto inquérito a respeito daquele infeliz que foi morto por um “purgante”. O diretor do presídio e o seu cunhado desaparecem e são substituídos por um antigo diplomata e advogado.

– Sim, Papillon, vou pô-lo em liberdade amanhã, mas gostaria que você levasse consigo o pobre Picolino, por quem tanto interesse tem demonstrado. Ele não possui qualquer identidade, mas vou conseguir uma carteira para ele. Quanto a você, aqui está uma carteira de identidade, perfeitamente em ordem e com seu nome verdadeiro. As condições são as seguintes: você tem que viver numa cidadezinha do interior durante um ano, antes de poder se estabelecer numa grande cidade. Será uma espécie de liberdade provisória, não vigiada, mas que nos permitirá ver você viver e observar a maneira como você se defende na vida. Se no fim de um ano, como acredito, o chefe civil da localidade lhe der um atestado de boa conduta, então ele próprio dará fim ao seu confinamiento. Creio que Caracas será para você a cidade ideal. De qualquer maneira, você está autorizado a viver legalmente neste país. Seu passado, para nós, não interessa. Fica a seu cargo demonstrar que você está à altura da oportunidade que lhe damos de se transformar em homem respeitável. Espero que, antes de cinco anos, você se tornará meu patrício, mediante uma naturalização que lhe dará nova pátria. Que Deus o acompanhe! Obrigado por concordar em tomar conta desse destroço que é o Picolino. Só posso libertá-lo se alguém assumir por escrito a responsabilidade de tratar dele. Esperemos que num hospital ele consiga ficar bom.

É amanhã às 7 horas que vou poder sair em plena liberdade, na companhia de Picolino. Uma onda de calor invade meu coração; finalmente, deixei para sempre o caminho da podridão. Estamos em agosto de 1944. Há treze anos que estou esperando este dia.

Quis ficar sozinho na minha casinha da horta. Pedi desculpas aos meus companheiros, preciso estar só. A emoção é muito forte e muito bela para que eu a possa mostrar aos outros. Viro e reviro nas mãos a carteira de identidade que me foi entregue pelo diretor: minha fotografia no canto esquerdo, em cima o número 1 728 629, emitida em 3 de julho de 1944. Bem no centro, meu sobrenome; embaixo, meu nome de batismo. Atrás, a data do nascimento, 16 de novembro de 1906. O documento de identidade está perfeitamente em ordem; está mesmo assinada e carimbada pelo diretor da Identificação. Minha situação na Venezuela: “Residente”. É formidável, essa palavra “residente” significa que sou domiciliado na Venezuela. Meu coração bate descontroladamente. Gostaria de me pôr de joelhos e agradecer a Deus, mas não sei rezar e não fui batizado. A que Deus vou me dirigir se não pertenço a nenhuma religião? Ao bom Deus dos católicos? dos protestantes? dos judeus? dos muçulmanos? Qual deles vou escolher para lhe dedicar a oração que vou ser obrigado a inventar em todas as palavras, já que não sei nenhuma oração completa? Mas por que procuro hoje o Deus a quem me dirigir? Pois em toda a minha vida, quando o chamei ou o amaldiçoei, não pensei nesse Deus menino Jesus em sua manjedoura, ao lado do boi e do burro? Será que no meu subconsciente ainda guardo rancor às boas freiras da Colômbia? E. então, por que não pensar somente no único, no sublime bispo de Curaçau, Dom Irénée de Bruyne, ou, ainda mais longe, no bom padre da Conciergerie?

Amanhã estarei livre, completamente livre. Dentro de cinco anos serei venezuelano naturalizado, pois estou certo de não cometer nenhuma falta nesta terra que me deu asilo e me renovou a confiança. Preciso ser, na vida, duas vezes mais honesto que qualquer um.

De fato, se sou inocente do homicídio de que me acusaram, e pelo qual um promotor, alguns tiras e doze jurados cretinos me despacharam para os duros, isto só pôde acontecer porque eu era um vagabundo, um marginal. Foi porque eu era um aventureiro que puderam facilmente tecer em torno de mim aquele amontoado de mentiras. Abrir os cofres dos outros não é profissão muito recomendável e a sociedade tem o direito e o dever de se defender. Se fui lançado, finalmente, no caminho da podridão foi porque, devo reconhecê-lo honestamente, eu era candidato permanente a ser para lá enviado algum dia. Se o castigo não foi digno de um país como a França, se uma sociedade tem o dever de se defender, mas não de se vingar tão sordidamente, isso é outra questão. Meu passado não pode ser apagado com uma simples esfregadela de esponja, preciso me reabilitar aos meus próprios olhos e, a seguir, aos olhos dos outros. Agradeça portanto, Papi, ao bom Deus dos católicos, prometa-lhe fazer algo muito importante.

– Meu Deus, perdoe se não sei rezar, mas olhe dentro de mim e verá que não tenho palavras bastantes para expressar minha gratidão por você ter me conduzido até aqui. A luta foi dura, a subida desse calvário que me foi imposto pelos homens não foi fácil e, por certo, se consegui ultrapassar todos os obstáculos e continuar a viver com saúde até este dia bendito, foi porque você tinha a mão sobre mim para me ajudar e proteger. Que posso fazer para provar que estou sinceramente agradecido pela sua bondade?

– Renunciar à vingança.

Será que ouvi, ou pensei ter ouvido essa frase? Não sei, mas ela me atingiu tão brutalmente (como se fosse uma bofetada), que quase acredito que a escutei realmente.

– Oh, não! Isso não! Não me peça isso. Essa gente me fez sofrer demais. Como é que você quer que eu perdoe os tiras corruptos, a falsa testemunha, Polein? Como vou desistir de arrancar a língua do promotor desumano? Não é possível. Você está pedindo muita coisa. Não, não e não! Sinto muito contrariá-lo, mas por preço nenhum deixarei de executar minha vingança.

Saio, tenho medo de fraquejar, não quero abdicar. Dou alguns passos na minha horta. Totó está arranjando as hastes de feijão para que subam e se enrolem nas estacas. Os três se aproximam de mim: Totó, o parisiense esperançoso das “bocas do lixo” da Rua de Lappe, Antartaglia, batedor de carteira, nascido na Córsega, mas que durante muitos anos “aliviou” os bolsos dos parisienses, e Deplanque, natural de Dijon, que matou um cafetão seu colega. Olham para mim, seus rostos mostram alegria pela minha liberdade. Logo será a vez deles, decerto.

– Você não trouxe da aldeia uma garrafa de vinho ou de rum para festejar a partida?

– Me desculpem, mas eu estava tão emocionado, que nem pensei nisso. Me perdoem o esquecimento.

– Mas não, nada temos a perdoar, vou fazer um bom café – diz Totó.

– Você está contente, Papi, porque você está definitivamente livre depois de tantos anos de luta. Estamos felizes por você.

– Espero que logo chegará a vez de vocês.

– Certo – diz Totó -, o capitão me disse que a cada quinze dias vai sair um de nós. O que vai fazer quando estiver em liberdade?

Hesitei um ou dois segundos, mas, corajosamente, embora receando parecer um pouco ridículo diante desse degredado e dos dois duros, respondi:

– O que vou fazer? Ora, não é complicado: vou começar a trabalhar e hei de ser sempre honesto. Neste país que me abriu um crédito de confiança, eu teria vergonha de cometer um delito.

Em vez de uma resposta irônica, fico surpreendido, porque todos os três dizem, quase ao mesmo tempo:

– Eu também decidi viver corretamente. Você tem razão, Papillon, vai ser duro, mas vale a pena e esses venezuelanos merecem o nosso respeito.

Não acredito no que ouço. Totó, o malandro do submundo do bairro da Bastilha, agora com essas idéias? É realmente assombroso! E Antartaglia, que viveu toda a vida esvaziando os bolsos dos outros, falando desse jeito? É maravilhoso. E Deplanque, cafetão inveterado, renunciando aos seus projetos de achar uma mulher para explorá-la? Isso é ainda mais espantoso. Todos começamos a rir juntos.

– Puxa! Esta história então vale ouro e, se você voltar amanhã a Montmartre, aparecer na Place Blanche, e contar ao pessoal, ninguém vai acreditar!

– Os homens da nossa laia vão acreditar, sim. Eles compreenderiam, meu chapa. Os que não podem admitir isso são os burgueses decadentes. A grande maioria dos franceses deformados não admite que uma pessoa possa, com o passado que temos, se transformar num homem de bem em todos os sentidos. Aí está a diferença entre o povo venezuelano e o nosso. Eu lhes contei a opinião daquele sujeito de Irapa, um pobre pescador, explicando ao chefe civil que um homem nunca está perdido para sempre, que é preciso lhe dar uma chance e ajudá-lo para que se transforme em pessoa honesta. Esses pescadores quase analfabetos do golfo de Paria, no fim do mundo, perdidos no imenso estuário do Orinoco, têm uma filosofia humanista que falta a muitos dos nossos concidadãos. Excesso de progresso mecânico, vida agitada, sociedade que só tem um ideal: novas invenções mecânicas, vida sempre mais fácil e melhor. Saborear as descobertas da ciência como se lambe um sorvete é coisa que provoca uma sede de conforto ainda maior e o desejo de lutar constantemente para o conseguir. Tudo isso mata a alma, destrói a compaixão, a solidariedade, a compreensão e a nobreza. Não há tempo para cuidar dos outros, e muito menos dos que já sofreram alguma condenação. Até mesmo as autoridades deste sertão são diferentes das nossas, pois elas são responsáveis pelo sossego público e, apesar disso, se arriscam a graves aborrecimentos, só por estarem convencidas de que vale a pena arriscar um pouco para salvar um homem. E isso é uma coisa magnífica.

Ganhei um belo terno azul-marinho, oferecido pelo meu aluno, hoje coronel. Ele partiu faz um mês para a escola de oficiais, classificado entre os três primeiros no concurso. Estou satisfeito em ter contribuído para o seu sucesso, com as aulas que lhe dei. Antes de partir, ele me ofereceu roupas quase novas que me vão muito bem. Vou sair decentemente vestido graças a ele, Francisco Bolagno, cabo da guarda nacional, casado e pai de família.

Esse oficial superior, hoje coronel da guarda nacional, me honrou durante 26 anos com a sua amizade nobre e indestrutível. Simboliza realmente a retidão, a nobreza e os sentimentos mais elevados que um homem pode possuir. Apesar da sua alta posição na hierarquia militar, nunca deixou de me testemunhar a sua fiel amizade, nem de me ajudar em tudo e por tudo. Devo muito ao Coronel Francisco Bolagno Utrera.

Sim, vou fazer o impossível para me tornar e permanecer honesto. O único inconveniente é que nunca trabalhei, não sei fazer nada. Terei que fazer qualquer coisa para ganhar a vida. Não há de ser fácil, mas tenho certeza de que conseguirei. Amanhã serei um homem igual aos outros. Promotor, você perdeu a partida: saí definitivamente do caminho da podridão.

Viro-me e reviro-me na rede, no nervosismo da última noite de minha odisséia como prisioneiro. Levanto-me, atravesso a horta, que trabalhei tão bem nestes últimos meses. A lua ilumina tudo como se fosse dia. A água do rio corre sem ruído para a embocadura. Não se ouvem pássaros, estão dormindo. O céu está cheio de estrelas, mas a lua brilha tanto, que é preciso ficar de costas para ela, para poder ver as estrelas. Ã minha frente, a floresta virgem, com apenas uma clareira, onde se ergue a aldeia de El Dorado. Descanso nessa profunda paz da natureza. Minha agitação diminui aos poucos e a serenidade do momento dá a calma de que necessito.

Consigo imaginar muito bem o lugar onde, amanhã, desembarcarei da chata para pisar a terra de Simón Bolívar, o homem que libertou este país do jugo espanhol e que legou aos seus filhos os sentimentos de humanidade e de compreensão, graças aos quais tenho hoje a possibilidade de recomeçar a minha vida.

Estou com 37 anos, sou ainda moço. Meu estado tísico é perfeito. Nunca estive seriamente doente e posso afirmar que meu equilíbrio mental é perfeitamente normal. O caminho da podridão não deixou marcas degradantes em mim porque, na realidade, acredito que nunca me adaptei a ele.

Nas primeiras semanas da minha liberdade, terei que achar um modo de ganhar a vida, e terei ainda que tratar e fazer viver o pobre Picolino. Foi uma grande responsabilidade que assumi. Contudo, apesar de constituir um fardo pesado para mim, vou cumprir a promessa feita ao diretor e não abandonar esse infeliz até que possa interná-lo num hospital, entregue a mãos competentes.

Vou comunicar a meu pai que estou livre? Há muitos anos que ele não tem notícias minhas. Como vou saber onde está morando? As únicas notícias que teve a meu respeito foram as visitas da polícia, em cada uma das minhas evasões. Não, não adianta ter pressa. Não tenho o direito de remexer na ferida que talvez os anos transcorridos já cicatrizaram. Vou escrever para ele quando estiver bem de vida, quando tiver adquirido uma situação modesta mas estável, livre de problemas, e quando lhe puder dizer: “Paizinho, teu filho está livre, tornou-se homem bom e honesto. Vive deste ou daquele jeito. Não precisas mais baixar a cabeça quando falam dele, e é por isso mesmo que te escrevo, e para te dizer que te amo e que te venero sempre”.

Estamos em plena guerra mundial. Quem sabe se os alemães se instalaram em minha pequena aldeia natal? O departamento de Ardèche não é uma região muito importante da França. A ocupação ali não deve ser muito rigorosa. Que é que os alemães iriam fazer lá, a não ser colher castanhas? Sim, só vou escrever para casa quando estiver com a vida em ordem.

E agora, para onde vou? Acho que ficarei nas minas de ouro, num lugar chamado Callao. Aí poderei passar o ano que me pediram para viver numa pequena comunidade. Que vou fazer ali? Quem é que sabe! Mas não quero levantar problemas antes tia hora. Mesmo que tenha de cavar a terra para ganhar meu pão, estou disposto a fazer isso mesmo. A primeira coisa a fazer é aprender a viver em liberdade. Não vai ser fácil. Faz treze anos – com exceção daqueles poucos meses em Georgetown – que não tenho a preocupação de saber de onde vem a comida. Todavia, em Georgetown, eu soube me defender. A aventura continua, tenho que inventar uns truques para viver, naturalmente sem fazer ma! a ninguém. Vamos ver o que acontece. Amanhã, então, Callao.

São 7 horas da manhã. Belo sol tropical, céu azul sem nuvens, passarinhos cantando sua alegria de viver, meus amigos todos reunidos à porta da nossa horta, Picolino vestido à paisana e bem barbeado. Parece que a natureza, os bichos e os homens respiram contentamento e festejam a minha libertação. Um tenente se acha entre os meus amigos, ele vai nos acompanhar até a aldeia de El Dorado.

– Mais um abraço – diz Totó, – e vá embora. É melhor para todo mundo acabar logo com isso.

– Adeus, meus chapas. Quando vocês passarem por Callao, venham me procurar. Se eu tiver uma casa, ela estará aberta para vocês.

– Adeus, Papi, boa sorte!

Dirigimo-nos rapidamente para o embarcadouro e subimos na chata. Picolino caminha muito bem. Ele está paralisado só dos quadris para cima, as pernas se mexem bem. Em menos de quinze minutos, atravessamos o rio.

– Vamos, aqui estão os papéis de Picolino. Boa sorte, franceses. Vocês estão livres a partir deste momento. Adiós!

Pois, vejam, não foi difícil largar as correntes que carregávamos havia treze anos! “Vocês estão livres a partir deste momento.” Viram as costas para você e abandonam a vigilância. E nada mais. O caminho de pedregulhos que sobe do rio é logo transposto. Só temos um pacotinho com três camisas e uma calça para trocar. Estou com o terno azul-marinho, uma camisa branca e uma gravata azul para combinar.

Mas é claro que não se reconstrói uma vida como se costura um botão de calça. E se hoje, 25 anos depois, sou casado, tenho uma filha, vivo feliz em Caracas como cidadão venezuelano, isso se deve a muitos outros acontecimentos, a sucessos e fracassos, mas sempre como homem livre e cidadão correto. Talvez um dia eu venha a contar estas últimas aventuras, bem como algumas outras histórias um pouco banais que não couberam nesta narrativa.